Casas da Comenda de Ansemil
Imaginemo-nos saídos de Viseu, a caminho de S. Pedro do Sul. Pouco antes desta Vila, à margem esquerda da estrada, encontraremos um conjunto senhorial do século XVIII. São as CASAS DA COMENDA DE ANSEMIL.
Na fachada principal da Casa, a Cruz de Malta assinala a posse da Comenda pela Ordem de S. João Baptista do Hospital e a data de 1745, o ano da reconstrução do edifício.
Mas a Comenda de Ansemil é muito mais antiga, anterior mesmo à fundação da nacionalidade. Nas Inquirições de D. Afonso III, disseram os jurados que "villa de Gogia est de Hospitali (...) et Domina Tarasia, Regina, dedit ipsam villam Hospitali", isto é, D. Teresa (mãe de D. Afonso Henriques) doou Goja aos Hospitalários, "podendo concluir-se, com segurança, - escreve o Dr. Alexandre Alves - que nesse tempo já os homens do Hospital estanciavam em Ansemil"3.
Já se fantasiou e se escreveu que, na Casa da Comenda, se alojou D. Afonso Henriques, quando, em 1169, veio ao Banho (Termas de S. Pedro do Sul) fazer tratamento. Em artigo que publicámos nesta revista4, mostrámos, com boas razões - e não vamos repetir os argumentos - que tal pretensão não tem o mínimo fundamento documental, ou sequer de tradição. E reforçávamos a nossa argumentação, escrevendo que, se a presença do rei na Comenda tivesse algum fundamento, o facto não teria escapado aos historiadores das várias épocas, nomeadamente ao probo investigador que é o Dr. Alexandre Alves, no seu trabalho "As Casas da Comenda de Ansemil", que atrás citámos.
Fechado este parêntesis, continuemos.
Com o decorrer do tempo, a Comenda tornou-se senhora de muitos bens. Uns lhe foram doados, outros foram comprados e de outros os comendadores se apoderaram pela força. Era vulgar os poderosos "filharem " bens, especialmente pertencentes à coroa.
A Comenda de Ansemil era poderosa. Tinha um capitão-mor e um sargento-mor, com cinco companhias de ordenanças - Ansemil, Ranhados, Boaldeia, Mortágua e Bustos - todos nomeados pelos comendadores. Dominava sete coutos em terras de Lafões e tinha bens em vários pontos do País, nomeadamente na cidade de Coimbra5.
Num período cruciante da História de Portugal, foi a Comenda de Ansemil palco de um acontecimento importante, pelo contexto em que se inseriu, e ficou conhecido por LEVANTAMENTO POPULAR DE ARCOZELO. Deve-se ao Professor António de Oliveira, da Universidade de Coimbra, a divulgação deste acontecimento6. Do seu trabalho nos servimos.
Corria o ano de 1635. Portugal estava sob o domínio de Espanha. O governo procurava por todas as formas obter receitas e decretou o pagamento de "hum donativo voluntario ". O povo estava já sobrecarregado pela carga fiscal. A cobrança do donativo correu bem em terras de Lafões, com excepção de Arcozelo, um dos coutos da vizinha Comenda de Ansemil, da qual, ao tempo, era comendador Frei Pedro de Araújo, que na Casa da Comenda vivia, juntamente com alguns familiares.
Em Julho de 1635, mandou o Corregedor de Viseu proceder à cobrança do imposto decretado. Quando o enviado do Corregedor chegou a Arcozelo, o povo, apoiado pelo Comendador, prendeu-o, recusou o pagamento e queimou o mandato. A recusa alastrou a outras aldeias da Comenda.
O Corregedor reenviou o "porteiro da correição", cobrador do imposto, que acabou por ser emparedado num curral de bois. "E - diz o auto lavrado- mandando elle corregedor a segunda hordem pello dito porteiro e por dous homens mais que vinhão em sua companhia, o ditto commendador os prendeu e mandou prender com muita gente armada e os meteo em sua casa em hua corte de bois e lhe mandou tapar a porta com pedra"7.
O Corregedor foi pessoalmente a Arcozelo "com seus officiães", a fim de dominar a rebelião e fazer a cobrança. "E chegando ontem a este ditto lugar mandou lançar pregão pello ditto porteiro da correição que nenhuma pessoa saisse pella manhãa de sua casa porquanto tinha que fazer com elles o pedido do donativo, e indo elle corregedor oje (26 de Julho de 1635) polla manhãa para o ditto efeito correndo as portas de todos elles não achou nenhum em casa e as portas fichadas por fora e muitos delles tambem trancados por dentro"8.
Quanto aos homens, nenhum apareceu. Pelos outeiros e caminhos tinham deixado espias, que vigiavam o Corregedor, que apenas os viu de longe, capitaneados por Pedro Lobato, filho bastardo do Comendador, e um seu irmão, Gaspar Lobato", com espingardas nas mãos". Outros barricaram-se na Casa da Comenda. Para lá se dirigiu o Corregedor, mas encontrou as portas trancadas. Apenas, numa das janelas, apareceu uma mulher, que foi encarregada de intimar Gaspar Lobato a comparecer numa ermida próxima, onde se esperaria que fossem pagar o donativo, enquanto se procedia à redacção do auto. Apareceu apenas um clérigo que disse ao Corregedor que fosse ele à Casa da Comenda.
A prudência do magistrado aconselhou-o a não se aproximar da Casa. Ali se encontravam "os dittos Gaspar Lobatto, e Pedro Lobatto amotinados com todos os homens destes lugares a sombra da caza da ditta comenda que he caza forte e de guerra com muitas seteiras no alto e no baixo para dahi ofenderem, e se defenderem (...) e porque elle corregedor se não achava com guente capas em numero para o prender nem seu officio era melitar senão o de justiça, e por hora se não fazia força a officiães della mandou fazer este auto"9. E o Corregedor regressou a Viseu sem cobrar o donativo.
Tudo consta do auto levantado, que se encontra na Torre do Tombo e foi publicado pelo Professor António de Oliveira.
O levantamento popular de Arcozelo, em 1635, insere-se no clima de descontentamento que grassava em todo o reino, contra o governo filipino, e vai ganhar maior amplitude com os motins de Évora de 1637, culminando com o 1.º de Dezembro de 1640.
Com o triunfo do liberalismo e a consequente extinção das Ordens Religiosas, a Comenda de Ansemil passou a fazer parte da Fazenda Nacional. As casas e a quinta foram-se degradando, até que, em 1984, foram adquiridas pelos actuais proprietários, que procederam a importantes obras de restauração e remodelação da casa.
Convertida em estância de turismo rural, ali se pratica agricultura biológica, especialmente na produção de vinho e frutas.
Na fachada principal da Casa, a Cruz de Malta assinala a posse da Comenda pela Ordem de S. João Baptista do Hospital e a data de 1745, o ano da reconstrução do edifício.
Mas a Comenda de Ansemil é muito mais antiga, anterior mesmo à fundação da nacionalidade. Nas Inquirições de D. Afonso III, disseram os jurados que "villa de Gogia est de Hospitali (...) et Domina Tarasia, Regina, dedit ipsam villam Hospitali", isto é, D. Teresa (mãe de D. Afonso Henriques) doou Goja aos Hospitalários, "podendo concluir-se, com segurança, - escreve o Dr. Alexandre Alves - que nesse tempo já os homens do Hospital estanciavam em Ansemil"3.
Já se fantasiou e se escreveu que, na Casa da Comenda, se alojou D. Afonso Henriques, quando, em 1169, veio ao Banho (Termas de S. Pedro do Sul) fazer tratamento. Em artigo que publicámos nesta revista4, mostrámos, com boas razões - e não vamos repetir os argumentos - que tal pretensão não tem o mínimo fundamento documental, ou sequer de tradição. E reforçávamos a nossa argumentação, escrevendo que, se a presença do rei na Comenda tivesse algum fundamento, o facto não teria escapado aos historiadores das várias épocas, nomeadamente ao probo investigador que é o Dr. Alexandre Alves, no seu trabalho "As Casas da Comenda de Ansemil", que atrás citámos.
Fechado este parêntesis, continuemos.
Com o decorrer do tempo, a Comenda tornou-se senhora de muitos bens. Uns lhe foram doados, outros foram comprados e de outros os comendadores se apoderaram pela força. Era vulgar os poderosos "filharem " bens, especialmente pertencentes à coroa.
A Comenda de Ansemil era poderosa. Tinha um capitão-mor e um sargento-mor, com cinco companhias de ordenanças - Ansemil, Ranhados, Boaldeia, Mortágua e Bustos - todos nomeados pelos comendadores. Dominava sete coutos em terras de Lafões e tinha bens em vários pontos do País, nomeadamente na cidade de Coimbra5.
Num período cruciante da História de Portugal, foi a Comenda de Ansemil palco de um acontecimento importante, pelo contexto em que se inseriu, e ficou conhecido por LEVANTAMENTO POPULAR DE ARCOZELO. Deve-se ao Professor António de Oliveira, da Universidade de Coimbra, a divulgação deste acontecimento6. Do seu trabalho nos servimos.
Corria o ano de 1635. Portugal estava sob o domínio de Espanha. O governo procurava por todas as formas obter receitas e decretou o pagamento de "hum donativo voluntario ". O povo estava já sobrecarregado pela carga fiscal. A cobrança do donativo correu bem em terras de Lafões, com excepção de Arcozelo, um dos coutos da vizinha Comenda de Ansemil, da qual, ao tempo, era comendador Frei Pedro de Araújo, que na Casa da Comenda vivia, juntamente com alguns familiares.
Em Julho de 1635, mandou o Corregedor de Viseu proceder à cobrança do imposto decretado. Quando o enviado do Corregedor chegou a Arcozelo, o povo, apoiado pelo Comendador, prendeu-o, recusou o pagamento e queimou o mandato. A recusa alastrou a outras aldeias da Comenda.
O Corregedor reenviou o "porteiro da correição", cobrador do imposto, que acabou por ser emparedado num curral de bois. "E - diz o auto lavrado- mandando elle corregedor a segunda hordem pello dito porteiro e por dous homens mais que vinhão em sua companhia, o ditto commendador os prendeu e mandou prender com muita gente armada e os meteo em sua casa em hua corte de bois e lhe mandou tapar a porta com pedra"7.
O Corregedor foi pessoalmente a Arcozelo "com seus officiães", a fim de dominar a rebelião e fazer a cobrança. "E chegando ontem a este ditto lugar mandou lançar pregão pello ditto porteiro da correição que nenhuma pessoa saisse pella manhãa de sua casa porquanto tinha que fazer com elles o pedido do donativo, e indo elle corregedor oje (26 de Julho de 1635) polla manhãa para o ditto efeito correndo as portas de todos elles não achou nenhum em casa e as portas fichadas por fora e muitos delles tambem trancados por dentro"8.
Quanto aos homens, nenhum apareceu. Pelos outeiros e caminhos tinham deixado espias, que vigiavam o Corregedor, que apenas os viu de longe, capitaneados por Pedro Lobato, filho bastardo do Comendador, e um seu irmão, Gaspar Lobato", com espingardas nas mãos". Outros barricaram-se na Casa da Comenda. Para lá se dirigiu o Corregedor, mas encontrou as portas trancadas. Apenas, numa das janelas, apareceu uma mulher, que foi encarregada de intimar Gaspar Lobato a comparecer numa ermida próxima, onde se esperaria que fossem pagar o donativo, enquanto se procedia à redacção do auto. Apareceu apenas um clérigo que disse ao Corregedor que fosse ele à Casa da Comenda.
A prudência do magistrado aconselhou-o a não se aproximar da Casa. Ali se encontravam "os dittos Gaspar Lobatto, e Pedro Lobatto amotinados com todos os homens destes lugares a sombra da caza da ditta comenda que he caza forte e de guerra com muitas seteiras no alto e no baixo para dahi ofenderem, e se defenderem (...) e porque elle corregedor se não achava com guente capas em numero para o prender nem seu officio era melitar senão o de justiça, e por hora se não fazia força a officiães della mandou fazer este auto"9. E o Corregedor regressou a Viseu sem cobrar o donativo.
Tudo consta do auto levantado, que se encontra na Torre do Tombo e foi publicado pelo Professor António de Oliveira.
O levantamento popular de Arcozelo, em 1635, insere-se no clima de descontentamento que grassava em todo o reino, contra o governo filipino, e vai ganhar maior amplitude com os motins de Évora de 1637, culminando com o 1.º de Dezembro de 1640.
Com o triunfo do liberalismo e a consequente extinção das Ordens Religiosas, a Comenda de Ansemil passou a fazer parte da Fazenda Nacional. As casas e a quinta foram-se degradando, até que, em 1984, foram adquiridas pelos actuais proprietários, que procederam a importantes obras de restauração e remodelação da casa.
Convertida em estância de turismo rural, ali se pratica agricultura biológica, especialmente na produção de vinho e frutas.